Energia sem estresse
Gabriel Souza
| 20-10-2025

· Equipe de Veículos
São 10h42 de um sábado de feriado. As pistas da Autobahn estão fluindo bem; já a interestadual... nem tanto.
Você para em uma praça de recarga reluzente, as crianças de olho na lojinha de lanches, e o navegador promete um “reforço de 10 minutos”. Então chegam três SUVs ao mesmo tempo, e o horário estimado de partida dispara.
A recarga ultrarrápida não se resume a números grandes na placa — trata-se de projetar locais capazes de suportar os dias de pico sem derreter a rede elétrica ou a sua paciência.
Energia primeiro: alimentando a fera
Uma praça verdadeira de 350–400 kW é praticamente uma subestação elétrica em miniatura. Os projetistas começam considerando a demanda diversificada (nem todo carro consome 400 kW ao mesmo tempo) e picos coincidentes durante feriados.
Dois pilares fazem tudo funcionar:
• alimentação em média tensão (10–35 kV) com transformadores montados em base dimensionados para os 15 minutos mais movimentados do ano, não para uma terça-feira qualquer;
• buffers locais: sistemas de armazenamento de energia em baterias (entre 1 e 5 MWh) e, às vezes, coberturas solares. O buffer absorve os picos, enquanto a rede vai reabastecendo aos poucos. Isso é o que se chama de suavização de pico, e sai bem mais barato do que superdimensionar todos os cabos da rede.
Distribuição em corrente contínua: armários, não ilhas
Em vez do modelo “um carregador, um retificador”, as praças modernas usam armários de potência centralizados que alimentam vários pedestais por meio de um barramento em corrente contínua.
As vantagens:
• distribuição dinâmica de energia: se a vaga 3 precisa de 280 kW e a vaga 4 de apenas 90 kW, o software redistribui em milissegundos;
• maior disponibilidade: os módulos retificadores são substituíveis a quente; se um falhar, os outros continuam operando;
• preparação para o futuro: basta adicionar novos armários conforme o tráfego crescer, sem precisar refazer toda a instalação. Para frotas mistas (carros e vans), inclua capacidade de 1000 V/500 A e 1000 V/600 A, com redução automática em caso de aquecimento dos cabos.
Cabos com resfriamento líquido: velocidade sem superaquecimento
Para entregar mais de 350 kW com segurança, os cabos refrigerados a líquido mantêm a temperatura dos condutores sob controle.
Bons projetos priorizam tanto a ergonomia quanto a potência:
• braços contrabalançados reduzem o esforço e impedem que os conectores arrastem na neve ou na lama;
• cabos curtos e grossos, com pedestais angulados, evitam dobras e reduzem a resistência;
• resfriadores ativos monitoram a temperatura do líquido e do conector; o software diminui a corrente antes mesmo que sua mão perceba o calor.
Bônus: pedestais preparados para o inverno, com suportes aquecidos, evitam travamentos causados por congelamento e aceleram a rotatividade das vagas.
Filas em dias de pico: uma M/M/c amiga
O tráfego de feriado é imprevisível e cheio de picos.
Um modelo simples de fila M/M/c (chegadas aleatórias, tempos de recarga aleatórios e c carregadores) ajuda muito no dimensionamento:
• taxa de chegada (λ): conte os veículos por hora nos horários de pico, com base em telemetria, e acrescente de 10% a 20% para crescimento futuro;
• taxa de serviço (μ): use tempos reais de recarga, não promessas de catálogo. Uma parada “de 10% a 80%” costuma levar de 14 a 22 minutos em 350 kW — mais lenta se estiver frio ou acima de 60% de carga;
• servidores (c): o número de vagas com potência independente (não apenas pedestais — pense em kW disponíveis). Ajuste para que o tempo médio de espera fique abaixo de 5 minutos no percentil 95.
Se o cálculo estourar, adicione vagas de espera e um sistema de roteamento com concierge (um atendente ou aplicativo que direcione os carros) para reduzir indecisões humanas.
Matemática de fluxo vence a potência nominal
O que realmente aumenta o número de carros atendidos por hora não é o “400 kW” na placa, e sim o fluxo operacional:
• API de pré-condicionamento: integre ao navegador, para que os carros cheguem com as baterias aquecidas; baterias frias reduzem drasticamente a potência inicial;
• faixas de estado de carga: incentive chegadas entre 10% e 30% e saídas entre 60% e 80%, por meio de preços; acima de 80%, a redução de potência ocupa as vagas por mais tempo;
• ilhas com dois pedestais e faixas de passagem contínua para veículos com reboque; nada de manobras de ré, trocas mais rápidas;
• pagamento antecipado: toque para iniciar, RFID de frota e plug-and-charge. Cada tela extra = menos carros por hora;
• ritmo de manutenção: limpe detritos dos ventiladores dos cabos, verifique níveis de líquido de resfriamento e calibre contatores; um pedestal “meia-boca” pode acrescentar minutos a cada sessão.
Truques inteligentes para a rede
• Arbitragem de horário com a bateria local: carregue os buffers fora do pico e descarregue no horário de almoço;
• projeto preparado para redução de demanda: se a concessionária enviar um sinal de resposta, reduza 10% a 15% da carga total sem interromper o serviço;
• comunicações redundantes: fibra ótica e LTE de backup garantem que pagamentos e controle de energia continuem mesmo se uma escavadeira atingir o duto principal;
• zonas térmicas: divida os armários em circuitos de resfriamento independentes; um filtro entupido não deve reduzir o desempenho de todo o corredor.
Experiência do usuário é eficiência
Pequenos confortos mantêm as sessões curtas e agradáveis: para-ventos, boa iluminação, dispensadores de luvas em regiões frias e sinalização clara que evita bloqueios e estacionamentos duplos.
Painéis em tempo real na saída da rodovia — “12 vagas, 2 livres, espera de 6 minutos” — evitam aglomerações e distribuem o fluxo para o próximo ponto.
O que os motoristas podem fazer para vencer a fila
• Chegue com pouca carga e saia cedo: procure chegar com 15%–20% e desconectar por volta dos 70%;
• pré-condicione no caminho: defina o carregador como destino, para o carro aquecer a bateria;
• use primeiro as vagas externas: elas costumam estar ligadas a armários menos sobrecarregados;
• compartilhe a faixa: se estiver rebocando, use pedestais de passagem; se não, não bloqueie esses pontos.
Conclusão
Construir praças de 350–400 kW em grande escala não tem a ver com potência heroica, e sim com pensamento sistêmico: conexões elétricas dimensionadas corretamente, buffers de bateria, distribuição inteligente em corrente contínua e filas ajustadas para a pior hora do ano.
Quando tudo isso está certo, a recarga no feriado parece até entediante — no melhor sentido. Você chega, conecta o carro, pega um café e sai, se perguntando por que já achou isso tão complicado.